Vou confessar uma coisa já de início: pescador que se preze não acorda cedo. Ele amanhece junto com o dia, muitas vezes após uma noite de vigília sem pregar o olho por um instante sequer. E faz isso sorrindo, antecipando-se ao despertador, como quem vai reencontrar um velho amigo que nunca falha ao compromisso. Porque pescaria, meu caro, não é esporte nem passatempo — é um jeito de lavar a alma sem precisar tirar a roupa.
Eu aprendi isso com meu pai. A gente saía ainda no escuro, tropeçando na própria vontade, com a tralha nas costas e o café mais ralo do mundo empurrando a esperança garganta abaixo. Íamos caminhando sem falar nada… e dizendo tudo. Meu pai era desses homens que conversavam mais com rio e represas do que com gente. Eu ficava do lado, escutando.
Hoje entendo que pescaria era o jeito dele de me ensinar presença — aquela virtude que anda em falta nos mercados, nas redes sociais e nos lares. Pescar é ouvir o silêncio conversando. É isso.
Pescador não reclama de sol, de chuva, de vento contrário ou de mosquito faminto. O corpo até sofre, mas a alma agradece. Um dia ruim de pescaria é melhor que qualquer dia ótimo de trabalho. Quem gosta de pescar sabe: a gente não vai atrás de peixe — vai atrás de paz. É terapia barata, só que mais eficiente, e com a vantagem de que ninguém pergunta sobre sua infância. Só não digam isso ao pessoal da psicologia, que podem achar que estou diminuindo a profissão. Longe de mim.
Espero que nenhum companheiro de lida me conteste, pois as memórias reveladas nas Crônicas das Andanças exigem a verdade... Todos sabemos que o maior peixe da vida de qualquer pescador é sempre o que escapou. Essa é uma regra universal das beiras de rio. Cada pescador guarda seu monstro particular — enorme, brilhante, imbatível e absolutamente invisível.
No meu caso, vou além. Eu desenvolvi uma técnica que até hoje me garante boas risadas no meu íntimo e orgulho nas mesmas proporções. Vou revelar o que guardei por anos: eu gosto quando a linha enrosca. Sim, isso mesmo: enrosca.
Porque enrosco, meu amigo, é a oportunidade dourada de criar um espetáculo. Um convite à criatividade. Quando sinto a fisgada falsa, eu imediatamente assumo a postura de quem está prestes a entrar para a história da pesca nacional. Seguro firme, arqueio o corpo, faço força com a cara de quem está negociando com a própria natureza.
Os pescadores ao redor sempre se aproximam devagar, como corujas curiosas. Não é inveja — é um sentimento genuíno, quase puro, que lamenta a escolha, na opinião deles, pelo anzol errado. E eu ali, duelando com um galho com toda a dignidade possível. Sustento o drama até o ponto exato. E então dou o golpe final: puxo forte pra linha estourar com barulho de tragédia anunciada.
Viro para a plateia, limpo o suor que nem existe e decreto com solenidade:
— Viram? Esse era grande.
Mais um para minha galeria de grandes exemplares. E ninguém nunca duvidou. Porque pescador respeita o exagero alheio — é parte do pacto. Cada um tem seu causo. O importante é ter o exagero no limite certo, nem sempre respeitado, é bem verdade.
Pescar é colecionar momentos, não peixes. E momentos, ah… esses não fogem da linha.
Por isso continuo indo. Por isso continuo acordando cedo — ou amanhecendo. Por isso suporto sol, chuva, vento e silêncio — principalmente o silêncio, companheiro sempre indispensável.
Não é pelo troféu. Não é pela foto. Não é pelo tamanho do que se fisga. É por tudo que a pesca me devolve. E, no fundo, é também a chance de reencontrar o menino que eu fui — aquele que caminhava ao lado do pai, acreditando que o rio era infinito e que, em algum lugar dele, um peixe gigantesco nos esperava.
Ariano Veríssimo.